INTRODUÇÃO
A Lesão Renal Aguda (LRA) é um problema de saúde pública de incidência crescente1 que acomete cerca de 7 a 18% dos pacientes hospitalizados. Estimadamente, dois milhões de pessoas ao ano, em todo mundo, morrem por comprometimento renal2.
A LRA é de origem multifatorial, e quando combinada a comorbidades pré-existentes culmina em maior morbidade e mortalidade3,4. Estudos ressaltam que essa síndrome e seus efeitos clínicos adversos poderiam ser prevenidos ou atenuados por meio da detecção precoce e intervenções capazes de limitar ou impedir sua progressão, resultando em melhor desfecho dos pacientes5,6.
A Taxa de Filtração Glomerular (TFG) ou clearence de creatinina (ClCr) é considerado marcador sensível e específico de prejuízos na função renal7. A fórmula atual para cálculo do seu valor estimado, recomendado pelo Kidney Disease Improving Glogal Guidelines (KDIGO), é obtida A Lesão Renal Aguda (LRA) é um problema de pela equação Chronic Kidney Disease Epidemiology saúde pública de incidência crescente(1) que acomete Collaboration (CKD-EPI), onde a creatinina sérica cerca de 7 a 18% dos pacientes hospitalizados. ocupa lugar, haja vista ser ela o biomarcador de Estimadamente, dois milhões de pessoas ao ano, disfunção renal mais utilizado na prática clínica8.
Sabe-se que a TFG sofre interferência de alguns fatores como idade, sexo e raça. Além disso, a sua alteração pode resultar de complicações decorrentes de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) como a hipertensão arterial sistêmica (HAS) e Diabetes Mellitus (DM) e ainda, maior tempo de internação. Evidências científicas reconhecem que a alteração da TFG está associada a piores desfechos e condições clínicas de risco para desenvolvimento de LRA e Doença Renal Crônica (DRC)(7, 9).
O comprometimento progressivo ou persistente da função renal representado pela doença renal em estágio terminal pode ocorrer após um episódio de LRA(10). Sendo assim, a detecção precoce pela classificação KDIGO8 permite avaliação, e estratificação de risco fundamentada nas variações da TFG11. Frente ao exposto, é inquestionável a importância da prevenção e detecção precoce da LRA no cenário hospitalar. Neste sentido, os profissionais de saúde, a exemplo dos enfermeiros, devem reconhecer os principais fatores de risco para LRA e implementar intervenções específicas com intuito de reduzir a morbidade e a mortalidade associadas ao comprometimento renal, dessa forma melhorar a qualidade de vida dos pacientes e reduzir o impacto financeiro da LRA nos serviços de saúde12.
Neste sentido, o objetivo deste estudo foi verificar se há relação entre variações do clearance de creatinina e os fatores clínicos nos pacientes em regime de internação em clínica médica.
MATERIAL E MÉTODO
Estudo longitudinal, do tipo coorte prospectivo, quantitativo, realizado na unidade de clínica médica de um hospital público de grande porte do Distrito Federal. A instituição onde se desenvolveu o estudo é referência na Região Oeste do Brasil e atende a demanda populacional em diferentes especialidades clínicas.
Foram acompanhados 294 pacientes consecutivamente durante o período de 15 de janeiro de 2017 e 10 de março de 2018, segundo os critérios de elegibilidade. Como o estudo foi não probabilístico consecutivo o pesquisador principal estabeleceu o período de coleta, e a partir disso foram incluídos todos os pacientes internados que atendessem os critérios de inclusão/exclusão, como amostra do estudo, durante o período fixado. No entanto, considerando as perdas por óbito ou desistência optou-se por prolongar o período de coleta por mais três meses.
Desse total, foram incluídos nesse estudo 85 que evoluíram com lesão renal, segundo a classificação KDIGO8. O acompanhamento do paciente perdurou até 1 mês após a alta hospitalar. Os dados foram obtidos por meio de um questionário estruturado com itens de identificação (nome, idade, sexo, raça,) além de variáveis clínicas (doenças pregressas, doenças atuais) e laboratoriais (creatinina). Os pesquisadores responsáveis pela coleta de dados foram devidamente capacitados em relação ao preenchimento do questionário e a seleção dos participantes visando reduzir a possibilidade de viés de seleção e assegurar a validade interna do estudo.
Foram incluídos pacientes com idade ≥ 18 anos, e ausência de história prévia de LRA, e excluídos aqueles com história de cirurgia de emergência, diagnóstico médico de doença renal crónica (DRC), em diálise, com história de transplante renal e aqueles em que a creatinina sérica não estava disponível.
O valor basal da creatinina sérica assumido para cada paciente foi o menor coletado nos primeiros 7 dias de internação na clínica médica13. Embora a classificação KDIGO seja constituída pelos critérios creatinina sérica e débito urinário, este último não foi utilizado, considerando que no setor onde se coletou os dados não havia controle urinário diário dos pacientes em regime de internação.
Os valores de referência adotados tanto para os exames laboratoriais quanto para as medidas hemodinâmicas seguiram o protocolo da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES/DF) no momento em que os dados foram obtidos, a saber: creatinina sérica (masculino) 0,7-1,2 mg/dl; (feminino) 0,5-1,1 mg/dla, pressão arterial sistólica (PAS) 120-80 a 139-89 mmHg e pressão arterial diastólica (PAD) 80-89 mmHgb.
O estágio de comprometimento renal foi identificado após cálculo do clearance de creatinina estimado por meio da equação CKDEPI7 que utiliza como marcador principal a creatinina sérica para o cálculo. Sendo assim, dependendo da gravidade de acometimento renal o paciente foi classificado em estágio G1, aqueles com função renal normal, estágio G2 função renal discretamente reduzida, ou ainda, estágio G3a, com comprometimento renal leve a moderadamente diminuído; estágio G3b aqueles com função renal moderadamente a severamente diminuídas, estágio G4 severamente diminuído e grupo G5 com falência renal14.
a Valores obtidos no sistema interno (intranet) institucional da Secretaria de Saúde do Distrito Federal (DF), Brasil. b Protocolo de Atenção à Saúde Manejo da Hipertensão Arterial Sistêmica e Diabetes Mellitus na Atenção Primária à Saúde. Portaria SES-DF N° 161 de 21 de fevereiro de 2018, publicada no DODF N° 37 de 23.02.2018. Disponível em:http://www.saude.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2018/04/hipertencao-e-diabetes-Manejo_da_HAS_e_DM_na_APS.pdf
Para avaliação da gravidade do quadro clínico do paciente, utilizou-se o Índice de Comorbidade de Charlson (ICC). Essa escala incorpora idade e 17 condições médicas diferentes, sendo atribuído o valor (0 a 6) de acordo com as comorbidades de cada paciente. A soma dos pontos resulta no escore de comorbidade para o paciente15.
Para as variáveis quantitativas adotou-se o cálculo das medidas de centralidade (média, mediana) e de dispersão (desvio padrão e percentil 25-75). Os dados categóricos foram apresentados como frequência absoluta e relativa e analisados com o teste do qui-quadrado e o teste exato de Fisher, conforme apropriado. A normalidade foi testada com o teste de Kolmogorov-Smirnov. As distribuições assimétricas foram descritas com medianas e intervalos interquartis e analisadas pelo teste Mann-Whitney. Foram também calculados o odds ratio (OR) e o respectivo intervalo de confiança de 95% (IC 95%) para a comparação de risco entre grupos. Com relação aos dados ausentes, realizaram-se análises de sensibilidade para avaliar diferenças nas características demográficas e clínicas, na taxa de lesão renal aguda e nos resultados secundários quando os dados sobrevivente versus não sobrevivente e do nível do clearance de creatinina estavam indisponíveis. Foi considerado significativo o resultado com p ≤ 0,05 (α= 5%).
O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (FEPECS) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal sob o CAAE n° 51576215.8.0000.5553. Atendendo aos aspectos éticos em pesquisa com seres humanos, com assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, com intuito de preservar a privacidade e confidencialidade dos participantes.
RESULTADOS
Dos 85 pacientes analisados a maioria foi do sexo masculino (44/ 51,8%), com idade média de 66 ± 14 anos e de raça/cor parda (56,5%). Índice de Massa Corporal (IMC) 25,4 kg/m2, ClCr= 90 e permanência média de hospitalização prolongada (49 dias). Em 72,9% dos casos, os pacientes estavam conscientes e pouco mais da metade, acamados (58,8%). Dentre as comorbidades apresentadas a hipertensão arterial sistêmica (HAS) foi identificada com maior frequência (70,6%) (Tabela 1).
Nos primeiros sete dias após identificação do comprometimento renal, a maioria dos pacientes foi classificado no estágio G3b (27,8%), ou seja, com redução pouco severa da função renal. Entretanto, na alta hospitalar a maioria (26,3%) apresentou estágio G1, demonstrando recuperação da função renal durante a hospitalização, situação que persistiu até um mês após a alta hospitalar (44,4%) (Tabela 2).
Tabela 1 Distribuição dos pacientes de acordo com as características clínicas Distrito Federal, Brasil, 2018. (n= 85).

Tabela 2 Distribuição dos pacientes de acordo com a taxa de filtração glomerular (Clearance de creatinina), Distrito Federal, Brasil, 2018.

Idade avançada (p= 0,05) e tempo de internação prolongado (p= 0,001) foram fatores que se associaram a pior função renal (ClCr < 60 mL/min). Por outro lado, embora a maioria dos pacientes do sexo masculino apresente piora evolutiva da função renal não identificou-se correlação estatística (p= 0,6). Esta situação se repetiu para a pressão sistólica e diastólica, raça, IMC, Índice de Comorbidade de Charlson e mobilidade (Tabela 3).
Pacientes que apresentaram função renal mais preservada, ou seja, com TFG ≥ 30 ml/min (Categoria G1 a G3a), evoluíram com maior taxa de sobrevida quando comparados àqueles de pior função renal TFG < 30 (Categorias G4 e G5) (p = 0,007) (Tabela 4). Isso foi representado pelo odds ratio de 4,19 (IC 95%: 1,46 - 12,01), ou seja, a chance de evoluir a óbito dos pacientes da categorias G4 e G5 foi aproximadamente 4 vezes maior que dos demais pacientes.
DISCUSSÃO
Observou-se que o tempo de permanência hospitalar prolongado foi mais incidente em pacientes com idade avançada e pior função renal, ou seja, valores de clearance de creatinina menor que 60 ml/min. Além disso, constatou-se que indivíduos com maior comprometimento renal (ClCr < 30 ml/min) possuem a chance de evoluir a óbito aproximadamente quatro vezes mais em relação aos demais pacientes.
O envelhecimento populacional e acúmulo de comorbidades interferem na taxa de filtração glomerular (TFG)/ Clearance de Creatinina (ClCr), o que tem predisposto nos últimos anos ao aumento da incidência de LRA16,17. O envelhecimento natural oferece modificações na estrutura e função renal, a exemplo da esclerose glomerular e fibrose intersticial, que podem culminar na lesão renal propriamente dita11,18 e tender à progressão para a cronicidade, doença renal em estágio final e morte19, como identificado neste estudo. Esta situação se caracteriza pela redução progressiva da taxa de filtração glomerular ao longo da vida (aproximadamente 1 ml/min/1,73m2 por ano após os 30 anos de idade), e ainda de comorbidades e consequentes disfunções que comprometam a fisiologia renal20.
No presente estudo a idade avançada foi predominante, assim como a hipertensão arterial sistêmica (HAS), diabetes e cardiopatias, características clínicas que potencializam o risco para o comprometimento renal. Sabe-se que a HAS lesiona as unidades filtrantes dos rins, os néfrons, condição que limita ou impede a remoção de resíduos e excesso de líquido do sangue, predispondo à LRA6). Enquanto a DM, desencadeia aumento progressivo da excreção urinária de albumina acompanhada do declínio da filtração glomerular/ Clearance de creatinina21.
A identificação da maior gravidade clínica caracterizou-se pela elevação do Índice de Comorbidade de Charlson (ICC). Este perfil clínico favoreceu a maior incidência de LRA e pior desfecho, achado também observado em diferentes evidências científicas22-24.
Tabela 3 Associação das características demográficas e hemodinâmicas com a função renal (Clearance de Creatinina), Distrito Federal, Brasil, 2018.

11 paciente sem informação. 23 pacientes sem informação. 3 5 pacientes sem informação de clearance de creatinina
Tabela 4 Associação entre mortalidade de pacientes e a função renal (Clearance de Creatinina, ClCr), Distrito Federal, Brasil, 2018.

A condição de acamado, identificada na maioria dos pacientes representa ao longo do tempo uma condição restritiva que predispõe a perda acentuada de massa magra pela inadequada oferta de substratos nutricionais, deflagrada por situações pró-inflamatórias, pró-oxidativas e de hipercatabolismo que potencializam a piora da função renal reconhecida pela redução do clearance de creatinina25. Condição clínica destacada por alguns estudos26-28 como disparadora do prolongamento de internações e surgimento de complicações que, por sua vez, podem interferir e retardar a recuperação da função renal22.
Essa permanência hospitalar prolongada pode agravar a LRA e acarretar piores desfechos clínicos(4, 6), considerando que, além das comorbidades prévias, há por vezes necessidade de implementação de técnicas invasivas, terapêuticas medicamentosas, restrição da mobilidade dos indivíduos, o que resulta em maior risco de complicações e mortalidade29. Achado deste e de outros estudos5,22,30 reconhecido pela relação entre o maior tempo de internação, piora da função renal (p= 0,001) e maior incidência de mortalidade (p= 0,007).
Ademais, pacientes que sobrevivem com LRA têm risco aumentado de desenvolver DRC e doença renal terminal (DRT) a curto e a longo prazo2, por isso o acompanhamento dos indivíduos com comprometimento renal é fundamental independentemente do grau aparente de recuperação10.
As limitações deste estudo estão relacionadas à insuficiência de registros nos prontuários eletrônicos dos pacientes a falta de adesão dos pacientes participantes do estudo para avaliação da função renal após alta hospitalar. Por outro lado, a validade interna do estudo traduz a confiabilidade dos dados, assim como a possibilidade de generalização dos resultados.
Contudo, os dados obtidos podem subsidiar a equipe de enfermagem na construção e implementação de estratégias de intervenção individualizadas, pautadas na necessidade do paciente, cujo alvo é limitar ou impedir a progressão e a cronicidade da doença renal.