Introdução
Desde sua concepção, durante o regime pinochista, o sistema eleitoral binominal chileno é alvo de diversas críticas por parte de seus opositores. Criado por e durante o regime militar, o binominal é comumente acusado de ser um mecanismo construído para beneficiar a direita chilena e para impedir um eventual novo processo de ascensão política dos setores de esquerda, como o ocorrido durante o governo de Allende - interrompido pelo golpe de 1973. Dentre as principais críticas feitas aos corolários do funcionamento do sistema binominal, destacam-se uma suposta sobre representação da direita no Congresso, o desincentivo à participação eleitoral, e a promoção de uma “partidocracia” que retira autonomia decisória do eleitorado na definição dos candidatos eleitos. Em vigor desde 1989, quando eleições livres e diretas marcaram o fim da ditadura, o binominal foi recentemente desmontado por uma reforma eleitoral promovida pelo governo de Michelle Bachelet, sendo substituído por um sistema eleitoral com distritos de maior magnitude. Sua extinção representa o fim do ciclo Pinochet na história chilena, colocando termo ao último entrave autoritário elaborado pela ditadura. Sua reforma justificou pronunciamento de Michellet Bachelet, tratando-o como “um sistema concebido a partir do medo, o medo da livre determinação das pessoas, da representação plena, da inclusão da maioria, da maioria plena, da competência, e da plena democracia”.
Diante disso, o artigo que se segue tem o propósito de fazer uma discussão sobre o sistema binominal integrando três aspectos distintos: a sua origem, o seu funcionamento, e seu fim. Primeiramente, será feita uma digressão histórica que toca na origem do sistema binominal, levando em conta sua elaboração e os objetivos para os quais foi pensado. A partir disso, será discutido se o binominal é capaz de cumprir esses objetivos. Em um segundo momento, serão explicitadas as principais críticas feitas ao funcionamento do sistema binominal, e expostos alguns dados empíricos que clareiam o debate acerca dessas críticas. Visa-se compreender se essas críticas encontram embasamento empírico ou se são devaneios teóricos. Num terceiro momento, serão explicadas as alterações feitas no sistema eleitoral chileno durante o segundo mandato de Bachellet, que pôs um ponto final no período de vigência do binominal. Será discutida a nova configuração do sistema eleitoral formatada pele Lei nº 20.840 para, posteriormente, tentar observar com base em dados das eleições de 2017 se essa novo modelo inaugurado consegue dar respostas corretivas aos problemas anteriormente identificados no funcionamento do binominal para com a democracia chilena.
As origens e propósitos do sistema binominal
11 de Setembro de 1973. Por meio de um golpe de estado articulado pelas forças armadas chilenas, e com apoio do governo estadunidense de Richard Nixon, o General Augusto Pinochet toma o Palácio de La Moneda, derrubando o presidente democraticamente eleito Salvador Allende. Junto com o governo de Allende, o golpe de estado pôs termo também ao período de vigência da Constituição de 1925, iniciado um período de transição até a elaboração do texto base da Constituição que ainda vigora no Chile - a Constituição de 1980. Esse texto foi aprovado por um plebiscito, sabidamente fraudulento (Garretón e Garretón, 2010; Negretto, 2015; Pastor, 2004), que contou com a aprovação de 67% dos votantes.
Essa constituição concedeu a Pinochet um mandato presidencial de oito anos, ficando condicionado que, após esse período, deveria seria feita uma nova consulta popular sobre a interrupção do mandato de Pinochet, ou sua continuação por mais oito anos. Em Outubro de 1988, 56% dos votantes que participaram dessa consulta optaram por negar a continuidade de Pinochet à frente do poder executivo chileno, dando o primeiro passo em direção à redemocratização do país. Diante dessa derrota, Pinochet criou uma série de dispositivos que visavam construir (em seus próprios termos) uma “democracia autoritária”. Esses mecanismos ficaram conhecidos como “entraves autoritários” (Garretón, 1988), e incluíam a inamovibilidade dos chefes das forças armadas pela presidência; a exigência de quocientes altamente qualificados para a aprovação de emendas/reformas constitucionais; a criação de senadores biônicos; e a concessão ao Tribunal Constitucional da atribuição de julgar, sem direito a recursos, e sem necessidade de prestações de contas a nada e a ninguém, qualquer alteração nas leis orgânicas do país - sendo todos os membros do Tribunal Constitucional, e todos os Senadores biônicos, indicados pelo próprio General. A existência e o vigor desses mecanismos foram incômodas o suficiente para gerarem questionamentos sobre o caráter realmente democrático do sistema político chileno (Garretón e Garretón, 2010; Godoy Arcaya, 2009; Moulian, 1994; Lins e Stepan, 1999; Olavarría, 2003; Pastor, 2004; Siavelis, 2009; Valenzuela, 1997; Zúñiga Urbina, 2007).
Dado o caráter notoriamente autoritário do regime, a Constituição de 80 não previa o sistema através do qual seriam eleitos os deputados federais. A determinação de que estes seriam eleitos através do mesmo método indicado para os Senadores - por um sistema proporcional em distritos de magnitude dois - foi feita apenas em 1989. A partir de então, deu-se inicio a um processo de divisão dos distritos eleitorais binominais tendo como base o mapa eleitoral do plebiscito de 1988. Sabendo que o apoio a Pinochet era consideravelmente maior nos setores rurais do que nos centros urbanos, a divisão do território chileno em distritos foi pensada e realizada de tal forma que os vinte distritos menos populosos ficaram responsáveis por eleger quarenta deputados, ao ponto que os sete distritos mais populosos (que juntos contavam com praticamente a mesma população dos outros vinte), elegiam conjuntamente apenas a quatorze representantes (Navia, 2001). O malapportionment que caracteriza a divisão dos distritos eleitorais no Chile tem também o intuito de impulsionar politicamente a representação dos setores alinhados com o governo e com a política pinochista. É neste momento que origina-se, de fato, o sistema binominal como sistema eleitoral para os deputados chilenos.
Contudo, se o método de funcionamento do binominal foi determinado por Pinochet e seus companheiros após a derrota no plebiscito de 88, a sua espinha dorsal já havia sido tecida anos antes. Segundo Daniel Pastor (2004), a Comissão para Estudo de uma Nova Constituição, criada pela junta militar que governou o país no período logo após o golpe, já havia identificado o sistema eleitoral proporcional da Constituição de 1925 como o responsável pela fragmentação partidária que permitiu a ascensão da esquerda e a eleição de Allende. Embasando-se em uma série de entrevistas realizadas com lideranças políticas da época e com alguns dos principais articuladores do sistema binominal, Pastor argumenta fortemente no sentido de que o modelo proposto não foi, como se costuma dizer, fruto de um “temor de Pinochet e seus homens” após a derrota no plebiscito de 88. A proposta ideológica do governo militar para a contenção do fortalecimento da esquerda já havia sido pensada nos primeiros momentos após a efetivação do golpe de estado em 1973. Se sua forma definitiva foi decidida apenas com a derrota no plebiscito, o seu conteúdo era certamente anterior a ela.
A proposta era formular um sistema eleitoral que fosse capaz de, sobretudo, impedir um novo avanço das forças de esquerda no Chile. Em documento expedido pelo poder executivo chileno à Comissão Legislativa responsável por decidir a fórmula eleitoral que seria utilizada para compor a Câmara dos Deputados, afirma-se claramente que
La iniciativa tiene por finalidad establecer un sistema electoral mayoritario, que dé expresión, fundamentalmente, a las grandes corrientes de opinión, que tenga un cierto efecto reductivo en el número de partidos, que no reitere la nefasta experiencia electoral y partidista del pasado, que ofrezca claridad al elector sobre el significado y consecuencias de su voto y que introduzca el pragmatismo en las decisiones en bien del país, favoreciendo la moderación de todos los actores políticos (Historia de la Ley 18799, p. 39)
Se em documento oficial as palavras do executivo tocavam em “dar expressão às grandes correntes de opinião”, “nefasta experiência eleitoral do passado”, e “favorecer a moderação dos atores políticos”, na prática, os objetivos do sistema binominal eram induzir um sistema bipartidário motivada pelo temor de que uma alta fragmentação partidária pudesse levar à reascensão política da esquerda; alijar de representação parlamentar o Partido Comunista Chileno (PCC); e garantir a representação dos setores conservadores no poder legislativo, visando evitar a aprovação de reformas constitucionais pela esquerda e forçar uma conversão do discurso político para o centro através da imposição de um equilíbrio de forças dentro do Parlamento (Lei 18799; Pastor, 2004; Valenzuela, 2011; Von Baer, 2009).
Todavia, para que esses objetivos fossem cumpridos, não seria suficiente apenas que os distritos eleitorais fossem desenhados com esse propósito (gerrymandering), ou que assumissem magnitude dois. O funcionamento do sistema - ou, em outras palavras, a equação responsável por transformar votos em cadeiras legislativas - era crucial para a satisfação das metas projetadas pelo governo militar.
O mecanismo adotado para dar cabo desses fins foi a imposição da doblage como critério para que uma mesma coligação pudesse eleger os dois representantes de um mesmo distrito. O mecanismo da doblage impõe que, para assumir as duas cadeiras de um mesmo distrito, a coligação em questão obtenha no mínimo o dobro de votos da segunda coligação mais votada - não bastando que seus dois candidatos sejam os dois mais votados. No caso, se os candidatos a1 e a2 de uma coligação de A obtivessem 33% e 32% dos votos, e os candidatos b1 e b2 de uma coligação B recebessem 18% e 17% respectivamente, seriam eleitos os candidatos a1 e b1 - mesmo sendo os dois candidatos da coligação A muito mais bem votados que ambos os candidatos da coligação B1.
Diante disso, a primeira pergunta a ser respondida nesse artigo é: o sistema binominal cumpriu os objetivos para os quais foi elaborado?
No que toca à fragmentação partidária, Von Baer (2009) argumenta que o sistema binominal não conseguiu diminuir o número de partidos, que se mantém similar ao do período pré 1973. Essa leitura é compartilhada por Cabezas e Navia (2005), ao apontarem que no período entre 1989 e 2001, durante o qual foram realizadas quatro eleições, o número efetivo de partidos (NEP) não teve alterações significativas - variando entre o valor máximo de 3,95, e o mínimo de 3,71. Em 2006, de acordo com David Altman (2006), esse valor já se aproximava de 8 - valor do qual não se distanciou significativamente. O não cumprimento dessa meta pode ter sido, em parte, fruto da manutenção da possibilidade de se construir coligações partidárias.
No limite do argumento, se o número efetivo de partidos não diminuiu como se esperava, a organização dos partidos em termos eleitorais gira em torno de duas fortes coalizões fortemente estáveis que, pode-se dizer, funcionam eleitoralmente como dois partidos. Contudo, o recente impasse dentro Nueva Mayoría - originado na decisão da Democracia Cristã de lançar Carolina Goic como candidata própria em detrimento do apoio ao nome de Alejandro Guillier -, demonstra a falha dessa tese: mesmo que os partidos se arranjem em duas coalizões, elas não funcionam como dois partidos. Reitera-se aqui a hipótese de que as regras do sistema eleitoral não alteram a estrutura dos partidos, mas apenas obriga-os a uma adaptação momentânea até que sejam capazes de alterar as regras do jogo para que estas se adéquem à realidade política social na qual se inserem (Valenzuela, 2011). Ademais, a própria possibilidade de construir coligações eleitorais é um empecilho para que o sistema partidário de fato deslocar-se para um bipartidarismo. Entende-se aqui que essa primeira meta do sistema binominal não foi cumprida.
O objetivo de garantir a representação da direita chilena no Congresso pode ser empiricamente verificável como bem-sucedido. Dentre todas as eleições realizadas desde a redemocratização, a mais baixa taxa de presença da Alianza na Câmara dos Deputados foi de 39% do total de representantes da casa. Mas a forte presença da direita chilena no poder legislativo não pode ser vinculada diretamente à operação do sistema binominal, uma vez que obtém sempre cerca de 40% do total de votos, atingindo como pior e melhor marca, respectivamente, o apoio de 34% e 44% do eleitorado - o suficiente para ser considerada como um ator político significativo em qualquer democracia. Todavia, mesmo que os setores conservadores da política chilena estejam fortemente representados no Congresso, a intervenção do sistema binominal na alocação de cadeiras mostrar-se não necessária para isso. Tampouco aqui é possível afirmar que há sucesso do sistema binominal em forçar um aumento da representação dos setores conservadores.
A respeito de seu propósito de evitar nova ascensão da esquerda chilena, tampouco o sistema binominal fez-se útil. Se a esquerda chilena não conseguiu imprimir reformas de cunho social mais incisivas - dada o equilíbrio de forças no Congresso -, não se questiona o fato de a Concertación, ideologicamente situada e autorreconhecida com centro-esquerda, ter governado o país durante cinco dos seis mandatos presidenciais chilenos após a redemocratização. Essa massiva presença da Concertación no poder executivo chileno indica, indiscutivelmente, que ainda há forte identificação do eleitorado chileno com a esquerda.
Na esteira dessa moderação, pode-se afirmar que houve sucesso do sistema binomial em puxar o debate ideológico para o centro. Contudo, diante do fim de todos os entraves autoritários elaborados por Pinochet, essa conversão ao centro deveu-se não por uma “desesquerdização” da esquerda, mas pela impossibilidade de se aprovar medidas mais radicais diante do equilíbrio de forças no Congresso forçado pelo binominal. Em outras palavras, a moderação do discurso e das práticas políticas não se deve a uma nova formatação ideológica da política chilena, mas a uma adaptação necessária ao contexto e ao funcionamento de um arranjo institucional. Ademais, sendo possível garantir uma das duas cadeiras em disputa com apenas 1/3 dos votos, não há impositividade à busca do voto do “eleitor médio” por meio de uma moderação programática. Desta forma, a contenção da esquerda também não se realizou.
O diagnóstico elaborado até aqui é corroborado por Cabezas e Navia (2005). Segundo os autores, “o sistema binominal não logra os objetivos do arquiteto eleitoral”, não sendo capaz de induzir o sistema a um bipartidarismo, e nem de evitar uma nova ocorrência daquilo que Pinochet chamou de “nefasta experiência do passado” - o controle da política chilena pela esquerda. Em primeiro lugar, o sistema partidário está longe de configurar-se como um bipartidarismo, uma vez que tanto o número real quanto o efetivo de partidos estão distantes de dois. Em segundo, um grupo de forças de esquerda domina o cenário político chileno. A Concertación ganhou seis das sete eleições presidenciais, teve menos representantes que a Alianza na Câmara dos Deputados apenas uma vez (em 2009, durante o mandato de Piñera), e jamais elegeu menos que a metade do total de Senadores, configurando um cenário no qual é notoriamente o ator mais forte da política chilena. Na mesma toada, se o projeto de Pinochet visava um fortalecimento político da direita, sua coalizão ainda é uma segunda força nacional - exatamente como na eleição de Allende e no plebiscito de 1988.
Entretanto, se como se entende aqui, o sistema binominal foi incapaz de evitar a fragmentação partidária; se a direita chilena não é a principal força política do país; se não conseguiu conter os avanços eleitorais da esquerda; e se a moderação do discurso conseguida não está vinculada ao binominal, quais são as críticas realmente contundentes feitas a ele? Ou, em outros termos, se o sistema binominal não é capaz de satisfazer os fins que almejava, quais são os problemas acarretados por ele que o tornam alvo de tantas críticas?
Críticas ao funcionamento do sistema binominal
Os impactos do sistema binominal na democracia chilena e nos resultados eleitorais é provavelmente um dos temas que mais suscita debate na Ciência Política chilena. Dentre as críticas comuns de serem feitas ao modelo destacam-se sobretudo quatro. A primeira é seu impacto negativo sobre a proporcionalidade da representação, ou seja, sua baixa capacidade de transformar votos em cadeiras de maneira proporcional. Em segundo lugar, afirma-se que ele favorece a segunda força política. Em terceiro, diz-se que o sistema binominal diminui o grau de competitividade das eleições, sendo “seguro contra a derrota”. Por fim, ele é também visto como um instrumento que desincentiva a participação política ao concentrar muito poder decisório nas mãos das elites partidárias. Essas quatro críticas serão discutidas separadamente nessa seção, para que se possa tecer um panorama melhor sobre o funcionamento do sistema binominal, e seus impactos sobre o resultado eleitoral e sobre a democracia no Chile.
De saída, pode-se perceber que as duas primeiras críticas supracitadas andam de mãos dadas. Se o binominal - considerado um “sistema eleitoral proporcional de magnitude mínima”2 é incapaz de reproduzir fielmente a expressão popular dos votos em forma de cadeiras legislativas, isso significa que existem atores sendo prejudicados por seu funcionamento, enquanto outros, obviamente, são beneficiados. O argumento que perpassa grande parte da literatura é de que o sistema binominal provoca uma distorção na representação em benefício da segunda maioria - na maior parte das vezes, os partidos alinhados à direita -, provocando uma sobre representação parlamentar desses partidos (Aninat e Navia, 2005; Borel e Tanscheit, 2018; Garretón e Garretón, 2010).
Os prejudicados com o funcionamento do sistema eleitoral seriam, portanto, os partidos/coligações de esquerda. Essa percepção é comumente ilustrada com as eleições para o distrito de Santiago em 1989, na qual a Concertación lançou dois fortes candidatos para concorreram conjuntamente às duas vagas de Senador do distrito - Andrés Zaldívar, presidente da Democracia Cristã (DC), e Ricardo Lagos, fundador do Partido Pela Democracia (PPD) e liderança do socialismo chileno. Os dois conquistaram respectivamente 31,3% e 30,6% dos votos (aproximadamente 408 mil, e 400 mil votos), somando 61,9% dos votos válidos. Contudo, uma vez que coligação não conquistou a soma de 66,7% dos votos para conseguir a doblage, Ricardo Lagos acabou não sendo eleito. A segunda vaga foi alocada para Jaime Guzmán, líder da União Democrática Independente (UDI), que obteve 17,2% dos votos (aproximadamente 225 mil votos). Isso seria, para Daniel Pastor, uma evidência de que “o sistema binominal funcionou como seus designers planejaram” (PASTOR, 2004, p. 47). Como será demonstrado mais adiante, a esquerda que saiu prejudicada para o aumento o aumento da representação da direita não foi a Concertación, mas o Partido Comunista Chileno. A Concertación, na realidade, acabou também sendo beneficiada em representação.
Se a própria ideia de um sistema eleitoral de magnitude dois já é, sozinha, inadequada se analisada pela ótica da proporcionalidade, a regra da doblage acentua as possibilidades virtuais de descompasso entre os votos recebidos e as cadeiras legislativas ocupadas pelos partidos. David Altman (2009) ilustra o grau de desproporcionalidade permitido pelo sistema binominal através dos seguintes cenários3:
No cenário 1, uma vez que a coligação A não foi capaz de dobrar o número de votos da coligação B, seriam eleitos os candidatos A2 e B1 - mesmo diante da constatação de que A1 recebeu 5% a mais de votos que B1. O segundo exemplo configura um caso no qual a doblage é alcançada pela coligação A. Nessa situação, mesmo contando com o apoio de um terço do eleitorado, a coligação B não elege nenhum representante. E mesmo obtendo 31% dos votos, o candidato B1 perde as eleições para o candidato A1, que obteve apenas 1%. Por fim, na terceira situação, a divisão de cadeiras por coligação elege os candidatos A2 e B1, deixando o candidato C1, portador do dobro de votos de B1, fora da Câmara dos Deputados.
Obviamente esses cenários montados por Altman ilustram situações ideais, que não necessariamente encontram correspondência na realidade - a despeito do exemplo supracitado envolvendo Zaldívar, Lagos e Guzmán. Mas a mera possibilidade de que situações similares venham a acontecer, por si só, já é grave o suficiente para que o temor à sua ocorrência e, consequentemente, para que as críticas ao modelo binominal sejam justificáveis. Mesmo que na prática a distorção ocorra de forma significativamente menos caricatural.
Ao se pôr em evidência os dados referentes às eleições para a Câmara dos Deputados de 1989 a 2013 (ver Tabela 1) observa-se que a distorção gira em torno dos 8% a 14%. E se é verdade que a Alianza4 ocupou em todas as legislaturas uma porcentagem de cadeiras maior do que a porcentagem de votos recebidos, o mesmo também é válido para a Concertación (Auth, 2006; Carey, 2006). Dessa forma, o impacto do sistema binominal tem sido sempre positivo para as duas maiores coligações partidárias do Chile, e negativo para as forças alternativas a elas, que sempre elegem uma porcentagem de representantes menor do que o número de votos que lhes são atribuídos.
Como pode ser observado na Tabela 1, a Concertación foi, inclusive, mais favorecida que a Alianza na variação entre votos e cadeiras em quatro das sete eleições realizadas pós redemocratização. Ademais, a perda de representação das demais coligações é, em todas as legislaturas, significativamente maior do que o ganho de cadeiras por parte da Concertación e da Alianza, demonstrando que o impacto negativo do sistema binominal sobre as forças eleitorais mais fracas é maior do que o seu impacto positivo sobre os partidos/coalizões centrais. Em outras palavras, o sistema binominal é mais eficiente em prejudicar o Partido Comunista e os outros partidos fora do duopólio Concertación/Alianza, do que em beneficiar de fato a essas duas grandes coalizões.
Tabela 1 Porcentagem de votos e cadeiras ocupadas pelas duas principais coligações chilenas na Câmara dos Deputados, nas eleições de 1989 a 2013.

Fonte: <http://www.servel.cl/>
Situação similar pode ser observada nas eleições para o Senado (Tabela 2). Nota-se, contudo, que nessa casa há uma leve inclinação para um maior favorecimento à Alianza, sobretudo nas eleições de 1993. É interessante notar que, da mesma forma como acontece na Câmara dos Deputados, o efeito positivo do sistema binominal para a Concertación aumenta a partir de 2009, quando o PCC e outras forças de esquerda que até então costumavam lançar-se ao pleito separadamente, se unem a esta coalizão (Cabezas e Navia, 2005; Borel e Tanscheit, 2018). A partir de então, a Concertación passa a ser a maior beneficiada pela distorção.
Esses dados demonstram que há realmente uma tendência do sistema binominal em provocar certo grau de distorção na representação ao transformar votos em candidatos eleitos. Todavia, nada leva a crer que a direita chilena seja a grande beneficiada com essa desproporção. A forma como a composição das casas legislativas é influenciada pelo funcionamento do sistema eleitoral varia no tempo, beneficiando mais ou menos a Concertación ou a Alianza e, sempre, prejudicando os partidos, candidatos e coalizões externos a essas duas grandes forças. Tratando a questão com maturidade intelectual e científica, a tese de que o sistema binominal beneficia à direita deve ser refutada ou reformulada. Refutada, entendendo que o propósito de ampliar a bancada conservadora deságua também em um aumento da bancada de centro-esquerda. Reformulada, incluindo em sua divulgação também o impacto benéfico do binominal à grande coalizão de esquerda. Na prática, tanto a centro-esquerda quanto o conservadorismo saem ganhando com o binominal. Quem sai perdendo é esquerda radical representada pelo Partido Comunista Chileno (PCC).
Tabela 2 Porcentagem de votos e cadeiras ocupadas pelas duas principais coligações chilenas no Senado, nas eleições de 1989 a 2013.

Fonte: <http://www.servel.cl/>
A segunda crítica, feita à influência negativa do sistema binominal sobre a competitividade das eleições, passa por três aspectos. O primeiro deles é que o binominal induz a uma conjuntura com baixo número de candidatos. Se há uma tendência à diminuição do número de candidatos à medida que se diminui a magnitude dos distritos eleitorais, a regra chilena de que cada coalizão só pode apresentar um candidato para cada cadeira em disputa limita ainda mais a possibilidade de escolha dos eleitores. Esse fato é averiguado por Cabezas e Navia (2005), ao apontarem que número efetivo de candidatos, nas quatro primeiras eleições chilenas após o fim do regime militar foi em média de 3,84 (Cabezas e Navia, 2005, p. 41).
A possibilidade de lançar ao pleito apenas dois candidatos por coalizão leva aos outros dois pontos a serem discutidos sobre o impacto do binominal na competitividade: jogar a competição eleitoral para dentro das coalizões, e ser “seguro contra a derrota”.
Ao se limitar o número de candidatos que pode ser lançado, torna-se obrigatório que os partidos que compõem uma coalizão entrem em acordo sobre quem serão os dois candidatos em cada distrito. Em outros termos, inicia-se um processo conflituoso para decidir quais dois partidos lançarão candidatos em cada distrito, e quais partidos serão apenas apoiadores. Soma-se a isso a suficiência de 34% dos votos para que uma coalizão adquira 50% dos representantes de um distrito, e formata-se uma situação na qual, no limite do argumento, passa a caber à cúpula partidária a definição de quais serão os candidatos lançados ao pleito para serem eleitos em cada distrito, e qual dos candidatos irá apenas compor chapa. Cria-se assim uma espécie de hierarquia entre os candidatos lançados por uma mesma coalizão, que determina qual dos candidatos será realmente competitivo, e qual será lançado apenas pro forma ou como um “azarão”. David Altman (2006) explica esse desencadeamento de eventos da seguinte forma:
El binominalismo también tiene un efecto pernicioso sobre la competencia política. Dado que en la mayoría de los distritos el “doblage” es extremadamente difícil, la gran disputa política corre al interior de las coaliciones contendientes y no tanto entre las mismas. En outras palabras, el binominalismo ha derivado la competencia política supuestamente inter-coalicional a una competencia de corte más intra-coalicional. Así, la gran disputa se da en el ámbito interno de cada coalición para definir quién será el candidato “blindado” (ultra-preferencial) de la misma y lograr el apoyo de la mayoría de los simpatizantes de la coalición en un distrito o circunscripción. (Altman, 2006, p. 18-19)
Salvo nos raros distritos nos quais a doblage é vislumbrada por uma ou outra coalizão7, o resultado das eleições pode já estar decidido com alto grau de certeza no momento da seleção de candidatos pelos próprios partidos e coalizões. Sabendo que as chances de se conseguir o mínimo de votos necessários para conquistar uma das vagas em disputa é bastante alta, a coalizão que se considera mais fraca em um determinado distrito perde incentivos políticos para buscar ampliar o seu espaço de influência. A segurança contra a derrota diante do baixo grau de apoio necessário. Incentiva-se assim a formação de uma política cupular na qual as elites partidárias podem vir a ter mais influência no processo eleitoral e na definição da dos eleitos do que o próprio eleitorado (Altman, 2006; Aninat e Navia, 2005; Cabezas e Navia, 2005, Navia, 2006; Siavelis, 2004).
É importante apontar que a conquista da doblage não obedece a nenhum tipo de padrão histórico. Se em 89, logo após a redemocratização a Concertación conseguiu dobrar as cadeiras em doze dos sessenta distritos, esse número foi paulatinamente diminuindo até 2009, quando não conquistou as duas cadeiras em disputa em nenhum dos distritos. Notoriamente, a eleição de maior sucesso da Concertación em termos de doblage foi o de 1989, que marcou o fim do regime Pinochista e deu início à transição à democracia. O pior desempenho, quando não dobrou nenhum distrito, foi justamente em 2010, ano em que o candidato conservador Sebástian Piñera foi eleito presidente. A retomada em 2013, dobrando dez distritos, parece decorrer da grande oscilação na aprovação do governo Piñera no ano eleitoral - que apesar de terminar o mandato com 50% de aprovação, chegou ao índice de 36%, o mais baixo da história do Chile até então. A Alianza, por sua vez, conseguiu desde 1993 sempre dobrar as cadeiras do vigésimo terceiro distrito. Esses dados estão compilados no Quadro 1, sem discriminação de quais distritos foram dobrados.
No entanto, mesmo com 10 dobras em 2013, a Concertación não conseguiu os quóruns de quatro sétimos e nem de três quintos, exigidos para fazer reformas profundas na constituição, sendo obrigada a negociar com os deputados independentes que foram eleitos para atingir essa marca. A meta dos quatro sétimos só foram alcançados em 1989, quando fez a doblage em doze distritos e atingiu o seu melhor desempenho histórico. O quórum de três quintos nunca foi completado. Esses dados indicam que a maior dificuldade encontrada pela Concertación não era fazer a dobra, mas bater o quórum elevado requerido para promover essas reformas constitucionais. Desta forma, talvez o quórum alto para aprovação de reformas constitucionais seja o maior dos empecilhos democráticos elaborados por Pinochet. Se diante dos dados de doblage isso pode parecer um pouco óbvio, em meio a tantos outros mecanismos que visavam conter o progresso da esquerda, este artifício, tão simples e tão funcional, acaba sendo camuflado.
A crítica à “segurança contra a derrota” e à política de cúpulas é ainda mais acentuada por Valenzuela (2011) que chega a tratar esse contexto como a ordenação de uma “partidocracia” (Valenzuela, 2011, p. 7). A ideia de partidocracia de Valenzuela se estende também a outra característica do sistema eleitoral chileno marcada fortemente por uma influência do sistema binominal: o alto índice de reeleição de candidatos incumbentes. De acordo com estudo realizado por Patrício Navia (2004), cerca de 70% dos incumbentes pleitearam sua reeleição, sendo o índice de sucesso desses candidatos pouco maior do que de 80%. Esses dados são reiterados em artigo posterior de Bunker e Navia (2015), no qual estendem a análise até as eleições de 2009 e encontram dados similares: 75% de incumbentes se recandidatando, com 82% de sucesso eleitoral. Esses dados levam o autor a afirmar que “candidatos incumbentes têm suas cadeiras quase garantidas” (Navia, 2004, p. 16).
Por fim, Cabezas e Navia (2005) apontam que o alto número de candidatos pleiteando reeleição à Câmara dos Deputados é o principal fator de influência na diminuição do número efetivo de candidatos (NEC) - que apresenta uma tendência à queda entre 1989 e 2001 -, sendo que quanto maior o número de mandatos já cumpridos por um deputado, maior sua chance de recandidatar-se (Bunker e Navia, 2015). Desta forma, não apenas há um alto índice de reeleição entre os incumbentes, como há uma tendência à diminuição do número efetivo de candidatos ao longo do tempo. Se de saída, os dados apresentados nos artigos supracitados reiteram a primeira crítica feita à qualidade da representação promovida pelo binominal, em um segundo momento denunciam também que o alto grau de previsibilidade dos resultados provocado pelo sistema binominal tem atuado no sentido de diminuir ainda mais as possibilidades de escolha dos eleitores. Cabe, por fim, destacar aqui o fato de tanto a política cupular quanto o alto índice de reeleição de incumbentes serem traços fortes e característicos dos sistemas uninominais.
Os comentários tecidos até aqui acerca do binominal apontam para uma conjuntura na qual esse sistema a) provoca um alto grau de distorção na transformação de votos em cadeiras legislativas; b) beneficia os dois grupos políticos mais fortes do país, negando representação e excluindo do jogo político-institucional qualquer terceira via; c) é seguro contra a derrota e; d) incentiva a perpetuação de uma política cupular que retira do eleitorado grande parte de sua autonomia no processo de escolha de representantes (Garretón e Garretón, 2010). A consequência do conjunto da obra não poderia ser outra: desincentivo à participação eleitoral.
As discussões em torno da crise de participação eleitoral vivida no Chile passa por dois argumentos distintos. O primeiro deles, de cunho mais institucional, a trata como um desenvolvimento quase natural da forma como o sistema eleitoral se configura, reiterando o argumento acima de que a exclusão de terceiras forças, o baixo número de candidatos, a política cupular, e a desproporcionalidade, afastam o eleitorado da política. Essa leitura é feita, dentre outros, por Corvalán e Cox, ao afirmarem que
O sistema binominal gera incentivos perversos à participação. Os sistemas eleitorais estimulam a participação por serem representativos e competitivos (sistemas proporcionais) ou por gerar eleições muito decisivas (sistemas majoritários). No entanto, o sistema binomial não incorpora nenhuma dessas dimensões. Por um lado, tem a menor magnitude do distrito dentro do sistema proporcional, o que não se traduz em níveis desejáveis de representatividade e competência; por outro lado, também não é majoritário e, portanto, não gera eleições decisivas (Corvalán e Cox, 2012, p.5).
A outra interpretação, de cunho mais sociológico, entende a queda no interesse pela política como fruto de um recorte geracional que atua sobre os eleitores nascidos após o fim do regime de Pinochet. Essa perspectiva é apresentada por Contreras e Navia (2013), que após examinarem dados relativos ao eleitorado e aos votos8 no período de 1958-2012, assim como variáveis de caráter socioeconômico9, apontam que “aqueles que chegaram à maioridade depois da transição à democracia demonstram menores taxas de inscrição e de participação à medida que envelhecem”. Ou seja, o fenômeno da abstenção eleitoral não se aplica uniformemente a todo o eleitorado chileno. Incide com mais peso sobre um grupo de potenciais eleitores nascidos após 1972, sobretudo nos naqueles que tem entre 18 e 34 anos.
Analiticamente, as duas visões não são contraditórias. A influência que a configuração dos sistemas eleitorais podem ter sobre a participação são inegáveis. Da mesma forma, é de se esperar que essas influências operem de maneiras distintas sobre parcelas distintas do eleitorado. Independentemente dos motivos que levam a isso, fato é que existe uma queda sistemática nos índices de participação eleitoral chilenos, expressada tanto nos índices de inscrição eleitoral, quanto no comparecimento às urnas e nos votos brancos/nulos (Contreras e Navia, 2013, p. 428). O desinteresse do eleitorado pela política expressa-se também em uma queda na identificação partidária. Segundo Peter Siavelis, em 1992, pouco após a redemocratização, 82% dos eleitores afirmavam se identificar com algum partido político. Em 2008, apenas dezesseis anos depois, esse índice já havia caído pela metade, marcando apenas 43% (Siavelis, 2009, p. 12).
A reforma do sistema binominal: resultados preliminares e expectativas no médio prazo
O exposto até o momento demonstra que parte das críticas feitas ao sistema binominal e seus desdobramentos políticos são de fato congruentes com a análise empírica feita por diversos autores. Seu funcionamento realmente implica em uma desproporção entre votos recebidos e cadeiras alocadas, beneficiando as duas grandes coalizões (Concertación e Alianza), e prejudicando principalmente ao Partido Comunista Chileno. Ademais, fortalece uma política de cúpula, sendo seguro contra a derrota, dando grande poder decisório às lideranças partidárias, e desincentivando a participação eleitoral. O anseio por uma reforma que seja capaz de dirimir esses problemas faz-se mais do que justificável. Após longos debates sobre qual seria o melhor modelo a ser adotado no país, nos quais não havia consenso acerca de como remodelar o sistema eleitoral (Altman, 2006b; Aninat e Navia, 2005; Duval e Pertuzé, 2006; Gamboa, 2007; Valenzuela, 2006), a reforma do binominal foi aprovada em 2015, no segundo mandato da presidenta Michelle Bachelet. A recém-aprovada Lei nº 20.840, além de edificar um sistema eleitoral proporcional que sucede ao binominal, também modifica o mapa eleitoral do país, aumenta o número de parlamentares a serem eleitos, e cria cotas femininas nas listas partidárias e incentivos para o surgimento de novos partidos políticos.
O número de deputados aumenta de 120 para 155, e a reconfiguração do mapa eleitoral faz com que estes passem a ser eleitos em 28 distritos. Cada distrito elege um número de deputados proporcional à população, não podendo, contudo, exceder o máximo de 8 e mínimo de 3 deputados por distrito. Já o Senado é acrescido em 15 representantes, passando a ter 50 componentes distribuídos entre quinze circunscrições que elegem entre 2 e 5 senadores. Continua havendo, portanto, algum grau de malapportionment entre os distritos, mas de maneira significativamente menos acentuada que durante a vigência do binominal. A aloacação das cadeiras para a Câmara dos Deputados funcionarão pelo método D'Hondt10.
A lei estabelece também que cada partido reserve em sua lista de candidatos a quota mínima de quarenta por cento dos nomes para mulheres. Essa medida se deve ao fato de que, nas últimas eleições, apenas vinte cadeiras em todo o Congresso chileno são ocupadas por representantes do gênero feminino - 16% do total. Aliado a isso, criou-se também outros dois incentivos para o aumento da participação feminina na política: em primeiro lugar, aumenta o volume de financiamento público destinado às mulheres que se candidatarem ao Senado e à Câmara dos Deputados; em segundo, concede aos partidos políticos a quantia de quinhentas unidades de fomento por mulher eleita11.
A pergunta que continua pairando no ar é: as reformas feitas por Bachelet no sistema eleitoral chileno são capazes de curar as enfermidades anteriormente identificados no binominal, e que levaram à sua reforma?
As eleições presidenciais foram levadas a segundo turno após Sebastian Piñera (coalizão “Chile Vamos”, antiga Alianza) receber 36,6% dos votos, e Alejandro Guillier (candidato da “Nueva Mayoría”, antiga “Concertación”), 22,7%. A outra candidatura da esquerda, postulada pela “Frente Ampla” na figura da jornalista Beatriz Sánchez, contou com o apoio de 20,3% dos eleitores. O desempenho da Frente Ampla a alçou ao posto de uma terceira força política no Chile, rompendo com o domínio até então quase exclusivo das duas coalizões tradicionais do país. No segundo, Sebastian Piñera saiu vitorioso, sendo eleito para seu segundo mandato presidencial, recebendo 54,6% dos votos depositados nas urnas.
No que toca às eleições legislativas, a coalizão Chile Vamos, abocanhou nada menos que 46% das cadeiras, elegendo 72 dos 155 deputados eleitos, demonstrando a solidez da candidatura de Piñera e a força que terá diante do Câmara dos Deputados. A Nueva Mayoría e Frente Amplia conquistaram respectivamente 43 e 20 cadeiras. A Convergência Democrática, por meio do Partido Demócrata Cristiano (PDC), elegeu 14 deputados. No Senado, novamente a coalizão Chile Vamos obteve a maior bancada, contando 19 Senadores, mas ainda sem maioria na casa. Nueva Mayoría e a Convergência Democrática tiveram respectivamente 14 e 6 Senadores eleitos. As demais cadeiras foram distribuídas entre a Frente Amplia e o Partido Amplio de Izquierda Socialista (PAIS), com um Senador cada, e outros dois Senadores “independentes”, eleitos sem filiação partidária. Essa distribuição faz com que a Democracia Cristã se configure como o fiel da balança: é a ela que Piñera deverá recorrer para ter seus projetos aprovados.
O primeiro turno contou com a participação de 46,7% do eleitorado. Segundo índice mais baixo da história chilena pós democratização, como mostra a tabela 3.
O registro automático dos eleitores, que tinha como objetivo aumentar a participação cidadã e o comparecimento às urnas, não surtiu o efeito esperado. A raiz da preocupação acerca do comparecimento eleitoral deu-se a partir da queda vertiginosa observada nas eleições de 2009, quando apenas 59% dos eleitores efetivaram o direito ao voto - em contraste com a média de 90% de comparecimento nas eleições anteriores (Avendaño Pavez, 2013). Todavia, mesmo sendo 2009 um ano marcante nesse aspecto, deve-se atentar para o fato de que a participação eleitoral no Chile esteve sempre em queda (tabela 5). Os dados referentes às eleições de 2013 e 2017 deixam claro que o propósito não fez-se cumprir, ratificando os achados de Navia e Del Pozo Quevedo (2012) que, por meio de simulações de comportamento eleitoral, constataram que a modificação dessas regras não teve impacto no comparecimento eleitoral, e tampouco nos resultados das eleições de 2013 (Navia e del Pozo Quevedo, 2012).
Para além da composição partidária do Congresso é imprescindível que nos atentemos também para a forma como os congressistas se estratificam em termos de gênero - uma vez que o aumento da representação das mulheres na política era também uma das pautas centrais da reforma tocada por Bachelet. Nesse quesito as eleições legislativas de 2017 também tiveram resultados dignos de nota: foi eleito para o Congresso o maior número de mulheres da história do Chile, sendo 37 deputadas e 10 senadoras. Há que se pesar não apenas a reserva de vagas de gênero nas listas partidárias, mas também o aumento do número de congressistas que acompanhou a reforma no sistema eleitoral. Entretanto, o aumento no volume de mulheres eleitas não foi apenas absoluto (fruto do aumento de cadeiras no legislativo), mas também percentual, como mostra o Quadro 2. Em termos absolutos, o número de mulheres eleitas praticamente dobrou nas duas casas, e proporcionalmente o aumento foi próximo de 50%.

Fonte: Biblioteca del Congreso Nacional de Chile. Informe “La composición del Congreso Nacional de Chile: ¿Dónde están las mujeres?”, de 2012, acrescido de dados do sítio eletrônico da Cámara de Diputados e do Senado chileno (www.camara.cl/ e http://www.senado.cl/).
Quadro 2 Mulheres eleitas ao Congresso Nacional do Chile entre 2006-2018.
O que é crucial de ser debatido aqui é o impacto provocado pelas novas regras eleitorais no resultado final do pleito. Se de acordo com Navia e Del Pozo Quevedo (2012) a inscrição automática e o voto facultativo não foram capazes de alterar o comportamento do eleitorado e nem o rumo das eleições, o mesmo não pode ser dito sobre o novo sistema eleitoral. Para dar conta dessa averiguação, é imprescindível retornarmos às críticas comumente tecidas ao funcionamento do sistema binomial, sejam elas: seu impacto negativo sobre a proporcionalidade da representação, ou seja, sua baixa capacidade de transformar votos em cadeiras de maneira proporcional; o favorecimento à segunda força política - no caso das eleições de 2017, a Nueva Mayoría; o baixo grau de competitividade das eleições, sendo “seguro contra a derrota”; e, por fim, servir como um “desincentivo à participação política” por concentrar muito poder decisório nas mãos das elites partidárias.
Em termos de proporcionalidade votos/cadeiras não existem muitas dúvidas: a expectativa óbvia gerada pela literatura clássica de sistemas partidários é de ela que seja, ao menos em parte, corrigida pelo aumento na magnitude dos distritos. Essa expectativa se aplica menos sobre os distritos menores, que passaram a contar com três cadeiras, mesmo abrindo margem para a inclusão de uma terceira força na disputa eleitoral. Nos maiores distritos, que contam agora com oito vagas em disputa, a correção da desproporcionalidade provocada pelo sistema binominal tende a ser mais significativa. Na prática o que se encontra, contudo, é a permanência de uma sobre representação das maiores coligações na Câmara dos Deputados, como mostra a tabela 4:
Tabela 4 Porcentagem de votos e cadeiras ocupadas pelas duas principais coligações chilenas no Senado, nas eleições de 2017.

A razão mais indicada da manutenção dessa desproporcionalidade se deve ao fato de, mesmo após os distritos terem sido redesenhados, e aumentado número de deputados eleitos, a magnitude média dos distritos permanece relativamente baixa: 5,5. A tabela 4 mostra também que, assim como anteriormente, não há indícios claros de um beneficiamento da segunda força eleitoral. Os índices de distorção (comparativamente ao que seria considerada a alocação perfeita de cadeiras por votos) não se alterou de forma significativa em relação ao que acontecia durante o período de vigência do sistema binominal (Tabela 1). Ademais, assimetrias desse grau de grandiosidade são encontradas mesmo em sistemas eleitorais com distritos de alta magnitude, como é o caso brasileiro (Cavalcante e Turgeon, 2012; Nicolau, 1995).
A segurança contra a derrota tende a diminuir à medida que em que a representação atinge níveis mais altos de proporcionalidade. Ao mesmo tempo, a nova lei permite que as coligações lancem ao pleito um candidato a mais do que o número de vagas em disputa no distrito em questão, de forma que o número efetivo de candidatos, assim como o grau de competição entre eles deve aumentar. Aumenta-se, portanto, o grau de imprevisibilidade dos resultados do processo eleitoral - mesmo que a indicação de candidatos continue a ser feita verticalmente dentro das coalizões. Novamente, essa mudança qualitativa deve operar de forma mais significativa nos distritos dotados de maior número de cadeiras em disputa do que naqueles que passaram a contar com a magnitude mínima estabelecida nova lei: três.
O observado nas primeiras eleições pós-reforma eleitoral foi que estas permitiram a ascensão de uma terceira força eleitoral no Chile, rompendo com duopólio da representação protagonizado pela “Chile Vamos” (Alianza), e pela “Nueva Mayoria” (Concertación). Ainda é cedo para avaliar se a Frente Ampla ser solidificará de fato com uma potência no cenário político-eleitoral chileno, ou se será uma aventura de voo único. Todavia, o que o resultado de 2017 indica é que a organização do novo sistema eleitoral chileno permitirá que o sistema partidário também se reorganize com o surgimento de novas coalizões. Maior o número de atores relevantes, menor a certeza de vitória - e consequentemente, menor a “segurança contra a derrota” (Borel e Tanscheit, 2018).
O impacto da reforma na participação política do eleitorado talvez seja o mais imprevisível, justamente pelo fato de seus desdobramentos serem não sobre o sistema político ou seu funcionamento, mas sobre o comportamento e a ação de indivíduos. Em teoria, se o sistema binominal desincentivava a participação pelo fato de se situar em um limbo entre os modelos proporcionais e majoritários, pode-se esperar que um sistema mais proporcional atue positivamente sobre a participação, sobretudo caso haja de fato uma diminuição na capacidade das cúpulas partidárias de lançar candidatos “seguros”, e na previsibilidade dos resultados eleitorais - vale aqui a máxima de Przeworski (1984): “Ama a incerteza e serás democrático”. Essa leitura, contudo, parte da interpretação anterior de que a crise de participação no Chile é fruto do funcionamento do sistema eleitoral. Mas diante da ideia de que ela pode ser originada em um confronto geracional, como apontam Contreras e Navia (2013), ampliar a participação pode ser uma empreitada que demande mais investimento público do que apenas uma alteração nas regras do jogo - por mais significativas que essas alterações possam vir a ser. Para Quiroga, Díaz e Marambio (2014), a repercussão da reforma na participação pode ocorrer no sentido de agravá-la ainda mais. Os autores compartilham o temor de que o elevado número de candidatos, decorrente do aumento da magnitude dos distritos, confunda a cabeça do eleitorado, provocando uma expansão dos votos nulos e brancos.
O ocorrido, a valer, como demonstrado anteriormente na tabela 3, foi que o primeiro turno contou com a participação de 46,7% do eleitorado: segundo índice mais baixo da história chilena pós democratização. Na segunda fase da disputa presidencial, o índice de comparecimento foi de somente 49% do eleitorado. Desta forma, não houve, ao menos ainda, o aumento na participação eleitoral que as reformas almejavam produzir.
Para além dessas projeções, que tocam na performance ordinária do binominal, Auth (2014) aponta várias outras projeções positivas para o sistema político chileno que derivam da Lei nº 20.840. O autor afirma que o novo texto legal deve incidir também sobre o modelo de campanhas eleitorais, fazendo com que se tornem menos individuais e mais coletivas (partidarizadas). Já no que toca à representação, as cotas para mulheres na lista partidária, aliada ao benefício financeiro aplicado aos votos recebido por candidatas, deve aumentar a participação feminina no Congresso. Ademais, a ampliação da magnitude dos distritos permite que a eleição expresse de forma mais fiel a pluralidade da sociedade, facilitando com que sejam eleitos candidatos com pautas identitárias mais específicas “sem necessidade de diluí-las”. É o caso de minorias étnicas, raciais e LGBT (Auth, 2014, p. 4).
Considerações finais
Como dito no início deste artigo, o sistema binominal chileno era a última remanescência da arquitetura institucional formulada pela elite militar da ditadura para a construção de uma democracia “autoritária e protegida” (Pinochet, 1977). Se o sistema binominal tem uma filosofia política autoritária tanto em sua origem histórica quanto em seus propósitos políticos, o resultado de sua atividade não poderia ser, jamais, democrático.
Os dados explicitados demonstram que a maior parte das críticas elaboradas pela (ciência) política chilena ao sistema binominal realmente encontram embasamento empírico para sua justificação - mesmo que os propósitos para os quais ele tenha sido elaborado não tenham sido de fato alcançados. Este era um sistema incapaz de alocar cadeiras legislativas de forma condizente com a vontade popular expressada por meio do escrutínio; que favorecia eleitoralmente as duas grandes coalizões partidárias, excluindo de representação a terceiras forças políticas; que incentivava a formação de uma política cupular, dando excessiva importância a deliberações internas dos partidos e das coalizões na medida em que retirava do eleitorado grande parte do poder decisório a respeito da definição de representantes; e que, por tudo isso, afastava a população chilena da política, desencorajando a participação popular e produzindo uma crise de participação, representação, e identificação com os partidos.
O que é importante de ser ressaltado nas conclusões desse texto é que a reforma política promovida por Bachellet em 2015 não se mostrou, de acordo com os dados das eleições legislativas de 2017, totalmente adequada na tentativa de responder positivamente às críticas direcionadas ao sistema binominal. A desproporcionalidade entre os votos recebidos e as cadeiras alocadas às coligações mantiveram taxas similares às do período de vigor do binominal. Similarmente, os beneficiados por essa desproporcionalidade continuaram sendo as duas maiores coligações partidárias - Vamos Chile (Alianza) e Nueva Mayoría (Concertación) -, e os maiores prejudicados continuaram sendo a terceira força eleitoral - anteriormente o Partido Comunista, e agora a Frente Ampla. Tampouco houve alteração nos índices de comparecimento às urnas, mesmo com a inscrição eleitoral automática. O único aspecto no qual é possível sentir algum grau de sucesso das reformas de Bachellet, é na competitividade das eleições. Esse sucesso se demonstra mormente na ascensão da Frente Ampla como uma terceira via eleitoral, contrapondo-se ao duopólio que até então caracterizava a política chilena pós redemocratização.
Entretanto, sejamos justos: ainda é cedo para julgar a capacidade das reformas eleitorais de Michele de Bachellet em todos esses aspectos. Não se pode tratar a relação da população com o sistema eleitoral de forma mecânica, como se uma virada de chave fosse capaz de adaptar o eleitorado à nova forma de funcionamento das regras do jogo. Certamente a vida real não é uma simulação de Lemmings, por meio da qual a mudança de obstáculos promove uma mudança imediata no comportamento dos atores. A compreensão e adaptação a essa nova circunstância demanda tempo. Os índices de participação e comparecimento podem ainda, no médio e longo prazo, serem positivamente afetados pelo novo sistema eleitoral. Da mesma forma, a cristalização da Frente Ampla como uma alternativa viável somente poderá ser confirmada nos próximos ciclos, e será condicionada não apenas pelo novo método eleitoral, mas também por seu comportamento nos próximos anos, e sua capacidade de forjar lideranças e estabelecer vínculos fortes com seus representados.
A perspectiva que se tem de futuro para a política chilena, em termos de engrenagens eleitorais, é certamente promissora. É factível com a teoria política e com a empiria oriunda de demais experiências democráticas, conjecturar que os efeitos da reforma eleitoral tocada por Bachellet sejam positivos na promoção de maior competitividade, transparência, e participação. Diante disso, o desmantelamento do binominal é, em diversos sentidos, democratizante. É claro que, como preconiza Auth (2014), não se pode jogar sobre o sistema eleitoral o peso de todas as mazelas políticas de um país. E tampouco pode-se esperar que a simples modificação desse sistema seja capaz de suprimi-las inteiramente. Nas palavras do autor a agudeza dessas modificações “dependerá em boa medida de avanços na Lei de Partidos, nas leis de controle de gasto e financiamento de campanhas, e do estabelecimento de mecanismos que facilitem a participação eleitoral e deem maior relevância ao Congresso”.